A peça 'A máquina de abraçar' questiona isolamento humano
A peça se baseia no relato de uma autista concedido durante uma entrevista ao famoso neurologista e escritor Oliver Sacks, retirada do livro Um antropólogo em Marte
Luiz Felipe Reis, Jornal do Brasil
RIO DE JANEIRO - Desde a década de 90, a dramaturgia do espanhol José Sanchis Sinisterra, 69, tornou-se essencialmente familiar ao teatro brasileiro. Admirado por diretores como Aderbal Freire-Filho – responsável por Ay, Carmela (1993) – e Christiane Jatahy, recordista em montagens do autor – Ñaque, de piolhos e atores (1991); Perdida nos Apalaches (1997), dirigida pelo próprio; A falta que nos move ou todas as histórias são ficção (2005) e Leitor por horas (2006) – Sinisterra volta à cidade para acompanhar a estreia de um novo rebento: o texto inédito A máquina de abraçar, que marca a primeira direção da atriz Malu Galli e inaugura o galpão do Espaço Tom Jobim, a partir de quinta-feira.
O novo texto aborda a relação entre uma autista (que criou para si a tal máquina) e sua terapeuta, vividas pelas atrizes Mariana Lima e Marina Vianna. Como resposta à guarida caliente que seus textos recebem no país, Sinisterra reage com humor, faz pouco caso da qualidade e acentua “facilidades de produção”.
– É um orgulho e um fato que me surpreende ter tantos textos encenados – revela Sinisterra. – Externamente à essa questão da “qualidade”, só posso pensar que tenho bons amigos no Brasil e que minhas obras não são de produção cara. Brincadeiras à parte, às vezes, penso que estou cumprindo minha ambição de ser um autor ibero-americano, mais até que europeu. Sempre me surpreende a inventividade, a atração pelo risco, a ousadia e a extraordinária fluidez orgânica dos atores e atrizes brasileiros e latinos. Sei que as condições materiais não são fáceis no Brasil, mas isso parece incentivar a criatividade.
Intercâmbio assimétrico
A despeito da boa receptividade, Sinisterra considera o intercâmbio entre as produções teatrais brasileiras e espanholas “vergonhosamente assimétrico”. Revela que, em geral, o teatro espanhol ignora todo o teatro latino-americano, salvo exceções à dramaturgia argentina. Em relação ao Brasil, a dupla desculpa recai sobre a distância e diferença idiomática.
– Com o Brasil essa ignorância se agrava. Por exemplo, não tenho notícias de nenhuma montagem profissional de Nelson Rodrigues, isso para não falar de autores vivos – lamenta. – De fato, tenho um projeto com Aderbal Freire-Filho, há muitos anos, para diminuir esta assimetria.
A máquina de abraçar se baseia no relato de uma autista concedido durante uma entrevista ao famoso neurologista e escritor Oliver Sacks, retirada do livro Um antropólogo em Marte. Mais do que utilizar o autismo como ferramenta para investigar a dificuldade em estabelecer contatos e a a impossibilidade da comunicação entre humanos, o dramaturgo se interessa pelo distúrbio como “expressão de uma parte inacessível da consciência humana”.
– Os autistas são casos extremos de uma característica comum que temos. O outro é inacessível para mim. Talvez por isso seja tão difícil encontrar uma simetria na afetividade – elabora Sinisterra. – Todos nós necessitamos de uma máquina de abraçar. Mas a obra questiona também modos opostos de se viver: o ativismo e a passividade, a combatividade e a contemplação, além do pensamento racional e o conhecimento poético.
Sinisterra conheceu a atriz, e agora diretora Malu Galli, à época em que o monólogo Diálogos com Molly Bloom esteve em cartaz, em 2007. Após dirigi-la, o dramaturgo então ofereceu um texto que acabara de escrever. Pensava que Malu poderia interpretar a protagonista. Com o presente em mãos, Malu teve imediatamente vontade de dirigi-lo.
– Continuo pensando o ator e a interpretação, só que inverti a posição de câmera – diz Malu.
Sinisterra aprovou a surpresa:
– Devo dizer que ofereci o texto a Malu, pensando nela como atriz - recorda o diretor. – Mas não é frequente encontrar atores com a combinação de inteligência e sensibilidade que ela possui. Além disso, me interessou o que eu chamaria de sua expressividade translúcida. Às vezes luminosa e misteriosa.
Poucos elementos cênicos
Em A máquina de abraçar, Sinisterra propõe uma situação dramática e proposta cênica simples e peculiar de seu trabalho: duas mulheres, a terapeuta e sua paciente, conversam entre si e para a plateia.
– Em geral, tendo ao que chamo de uma teatralidade menor. Como abordar grandes temas com o mínimo de elementos dramáticos e cênicos? “Less is more” me parece uma boa fórmula artística. E um desafio interessante, sem falar das questões financeiras de produção.
Além de tratar da incomunicabilidade, A máquina... estimula o questionamento de pilares da sociedade, como a linguagem, a política, a ciência, a espiritualidade e a natureza. Juntos, compõem seu atual objeto de investigação.
– Uma grande pergunta para mim é como ser comum hoje em dia. E o teatro me ajuda a propor estas perguntas. Do ponto de vista temático, me preocupa a progressiva anestesia do ser humano diante do horror e da dor. E por último, a religião como doença quem sabe incurável da espécie humana, causa de inúmeros males.
Sinisterra, que já levou à cena obras de Joyce, Melville, Kafka, Cortázar e Saramago, continua a prestar tributo à literatura como fonte de inspiração para seus personagens – geralmente anti-heróis. O autor, que até há pouco alimentava o sonho de adaptar Budapeste, de Chico Buarque, agora se dedica a executar uma montagem de Clarice Lispector.
– Tenho uma grande dívida e inveja da literatura e sua liberdade – conta. – No teatro, não me interesso por heróis. Penso que cada derrota é única. Cada fracasso é excepcional.
Fonte: Jornal do Brasil